sexta-feira, 1 de outubro de 2010

O Trem


No campo, lá ao longe se avista o trem de ferro vindo a todo vapor em nossa direção, passando em meio às montanhas, subindo e descendo por todo o vale. E vem chegando, fazendo barulho, soltando fumaça sem parar. As crianças com seus ouvidos atentos procuram o fim da linha, querendo correr atrás de tudo, com seus olhos cheios de vida, abrem os braços feito asas e correm para fora de suas casas idênticas.


No quintal lá de casa tem folha verde depois da chuva que caiu a semana inteira. E o chão continua molhado, tem nuvem cá em baixo, bem perto do telhado. Tem cheiro de primavera no ar. Criança de pés descalços corre atrás do último vagão para sentir o vento vindo verde, de fumaça esparsa, coração acelerado no peito cansado de tanto correr. Tem gente chegando e tem gente indo embora. Tem gente que nem veio e tem gente que veio, mas não devia. Menino, deixa o trem passar. Itinerário traçado, caminhos passados. Não tem como você acompanhar.


Quando você se der conta, a paisagem se transformou e a vida aconteceu sem você perceber, diante de seus olhos sorridentes ao verem o trem chegar. E se o trem já passou, quando voltar já mudou tudo de lugar outra vez.


Enquanto os seus pés se esfregam na terra, fazendo lama, tem felicidade que não vem de trem. Menino pula no rio, dança na chuva, faz bolha de sabão. Tem felicidade que não tem. Travessia pelas suas travessuras, aventuras desertas pelos trilhos enferrujados do trem. Menino achando que é de ferro, energia de mil locomotivas, coração feito de aço. Uma hora você se descarrila, perde o controle, os sentidos, sai da linha. E quando menos esperar, menino, o trem estremece você.

segunda-feira, 30 de agosto de 2010

INSÂNIA


Para conversar sobre projetos, na maior das ironias. Deixar as pastas se abrirem e se juntar aos loucos. A loucura desejada pela mesmice de cada um dos seus dias. Marcas ainda recentes e as ideias vêm e voltam e mudam e (re)voltam. Projetos tantos que já ficaram esquecidos, no fundo da gaveta, no porta-retrato, na agonia diária de frustração e melancolia extrema.

Faça o que vem do coração. A essência está na simplicidade. Esses projetos, rascunhos cobertos de linhas tortas, devaneios saltitantes pelas ruas da imaginação. Entreabertas as suas pastas, entre aspas, entre quatro paredes. Entre e fique. Entre e deixe entrar. Loucura tremendo por dentro, querendo sair, expandir pra fora do peito pra sair da linha, deixar de lado seus incansáveis pretextos.

Aquela história do “nada acontece ao acaso”. Aquela pessoa que te esbarra na rua, de repente era para dizer algo especial no seu dia. Aquele 'bom dia' que você fica ensaiando toda manhã quando sai na rua seria poesia pra loucura chegar. E na varanda de casa, saia e deixe o sol penetrar na sua pele, sinta os raios da luz, que a loucura vem mais à frente. Deite na cama, corra bem longe, abra um sorriso e ria, ria, ria... ria até doer a barriga. A loucura chega sem pressa pra fazer festa, gargalhando sem parar.

Não é alucinação, não venha com essa história, que a loucura foge sem você perceber. Não venha dar opinião sem pedido, porque se a loucura foge, você vai ver. Encontrar a loucura todo dia é uma dádiva das forças naturais mais puras. Ah, mas deve ser difícil demais viver na sanidade desses dias o tempo todo.

quinta-feira, 29 de julho de 2010

Vácuo


Era uma vez uma menina que não conseguia escutar a própria voz. Ouvia tudo, menos o que ela mesma dizia. A mãe já havia levado a menina ao médico, 'otorrino' renomado na região, mas ninguém soube desvendar o mistério. Psicanálise, musicoterapia, terapia ocupacional, fonoaudiologia... e a menina falava, falava, falava e não conseguia ouvir a própria voz. Dá pra imaginar como deve ser dura a impossibilidade de não ouvir o som das palavras ditas por si mesmo?

Com o tempo novos problemas foram surgindo: a menina começou a idealizar sua introspecção expressada na voz de outras pessoas, para que pudesse então ouvir o que queria ouvir, ouvir o que falava. Assim, parecia-lhe mais branda a ideia de não ouvir a própria voz, já que, se tivesse o som das respostas que almejava, a menina poderia se sentir melhor por saber que o som de suas perguntas eram percebidos.

Almejava respostas idealizadas por si mesma o tempo todo. Admirável carência humana! A menina criava listas de respostas que queria ouvir de outras pessoas. Um dia percebeu que aquelas respostas prontas só criavam ainda mais questionamentos. E foi então que além de não ouvir a própria voz a menina também parou de querer ouvir a voz dos outros.
Deve ser esse o fim dos que não sabem ouvir. A causa da surdez opcional, a maldição das desventuras no vácuo.

quinta-feira, 20 de maio de 2010

"Bastião"

A sensação que incomoda é aquela de que a qualquer instante poderá chegar a notícia que, embora previsível, é deveras desagradável. Como se tudo caminhasse rumo às notícias desta espécie. Então talvez o destino ainda mude a direção, mude o comando destes pesares, acalme estas almas aflitas, desnorteadas, descompassadas. Quem sabe ainda existam chances pairando entre seu corpo já pálido e o cheiro de éter impregnado nas roupas de cama. Seria trágico demais se as esperanças se perdessem, porque no fundo elas são muito persistentes e não abandonam minhas preces encomendadas - porque a minha fé, esqueci onde guardei há meses.

Minha flor, essa semana o rio baixou, como se uma parte da natureza daquele lugar também houvesse se revoltado. O frio fez neblina, encobriu toda a casa e o caminho até a beira do rio. Revoltas pelas circunstâncias que levaram a esses desvios tortuosos, cruéis. Pode ser egoísmo demais, mas eu não queria te ver agora. Ainda que eu saiba que talvez não te veja nunca mais, certas coisas são controvertidas por natureza. A cumplicidade é algo muito raro... e acho sublime que você compartilhe dessa mesma ideia, talvez piegas e melancólica, mas no fundo é o que de mais importante restará de nós mesmos.

segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

DAQUI ATÉ A ETERNIDADE

E os nossos laços foram se desfazendo sem que a gente percebesse. Eu não sei mais que horas você acorda nem o que come no almoço. Se ainda dorme com aquele pijama velho, se ainda toma cerveja em caneca de alumínio ou se ainda briga por causa do sofá de frente a TV.

A gente não se reúne mais pra comer brigadeiro, nem para ir ao cinema na quarta-feira à noite, pagando meia com a carteirinha da biblioteca. A gente já não dorme junto no final de semana, só pelo tempo e pela companhia. Não brinca mais de gato-mia, não vira a noite jogando tranca e tomando vinho ou "eu nunca" bebendo "caipiceva" no copo do liquidificador.

Então parece que essas pequenas coisas foram ficando cada vez mais distantes de nós, as serpentinas foram desfeitas. A gente já não se fala todo dia, quando muito nas conversas de MSN. E não estamos mais reunidos nas mesmas fotos, fazendo graça, olhando para o lado, procurando a pose mais engraçada, forçando um "sem amigos".

Também não frequentamos mais os mesmos lugares, não nos entusiasmamos pelas mesmas coisas, não brincamos de "cachoeirinha" naquelas tardes de calor insuportável e várias antárcticas geladas espremidas no congelador, contando com as desculpas mais esfarrapadas para não ir ao estágio.

Da banheira do Gugu, do medo de alguns sobre parque de diversão, da raridade dos banhos de outros e da animação de todos nas noites de quinta-feira, nos esquentas com vodka barata. Das discussões, abraços, perdões. O engraçado nisso tudo é que sabíamos desde o início que esse dia chegaria, dia de despedida, dia de ir embora. Mas só que não contávamos com a intensidade de nossas aproximações, com tamanho envolvimento e afeto, carinho e emoção.

O mais incrível nisso tudo é que cada reencontro é e sempre será uma continuação de nossas histórias juntos, como se o tempo tivesse ficado em suspenso. E apesar de toda a distância e de todos os fatos novos que, de certa forma, nós ainda compartilhamos, cada vez será ainda melhor em momentos cheios de nostalgia e fraternidade. Momentos definitivamente simples e raros.


"E nossa estória
Não estará pelo avesso assim
Sem final feliz
Teremos coisas bonitas pra contar
E até lá, vamos viver
Temos muito ainda por fazer
Não olhe pra trás
Apenas começamos
O mundo começa agora
Apenas começamos".

- Renato Russo -

quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

Maresia

É que ele tinha o azul do mar dentro dos olhos, e tinha a voz calma, daquelas que dão vontade de sentar no chão pra ouvir histórias imensas, apoiando o queixo sobre as mãos fechadas e os cotovelos sobre as coxas e as pernas cruzadas sobre um tapete de plumas brancas. E eu não sei seu nome, mas sei a cor do seu sorriso como que iluminando tudo à sua volta. E isso basta.

terça-feira, 5 de janeiro de 2010

Tô usando o perfume que "ocê" adora

Quando eu conheci o Zé, rapaz bonito, camisa de seda, calça de linho, brilhantina no cabelo, sapato lustrado. Ele me levou pra morar na roça, eu cuidava da casa, fazia marmita para os "peão", lavava as "roupa" no rio, pajeava "os" filho pequeno. Eu saí da casa do meu pai com 14 anos, pra eu morar "mais" ele. Eu era uma menina ainda - com a roupa do corpo e o amor dentro do peito, que fazia "as" perna bambear: coração de verdade.

Aí um belo dia, depois de mais de 20 "ano", ele foi embora e nunca mais "vortô". Só que agora eu descobri que ele tem outra mulher. Eles "mora" na cidade e ele paga "inté" faxineira, a Dona Elza, mulher do Bizaco - o peão lá da roça. A Dona Elza falou esses dias que é serviço pesado, bruto mesmo... que a mulher suja umas cinco "roupa" por dia - tudo roupa chique que ela compra nas "butique". Tudo com o dinheiro dele. Diz que ela foi "no" médico um dia desses, descobriu que tem "pobrema" cardíaco, vai colocar marca-passo semana que vem.

Municipal

Ela o viu perto do bar, com os braços envolvendo a cintura de uma menina. E sentiu as pernas bambas, no leve movimento de transposição de todas as suas negações forçadas. Pernas que tanto flutuaram e se entrelaçaram entre as dele, quando as palavras vinham mais fáceis. Só que ela viu muito mais do que devia, viu-o não só de cabeça raspada, mas também viu em seus olhos tudo o que passou tanto tempo procurando. E viu também que aqueles olhos não lhe pertenciam - como se seus possíveis melhores momentos estivessem trancafiados a sete chaves. De sorriso diferente, nas ondas do som. Pegou a cerveja e procurou voltar para onde estava - mas várias coisas já haviam se perdido na multidão...