quinta-feira, 16 de maio de 2013

Neguinho



Era verão, no final da década de 90, quando meu pai adentrou a área do fundo de casa com uma caixa de papelão nas mãos e todos vieram ver o que era. Minha mãe, de cima da escada que dava acesso à cozinha, viu desde logo que lá dentro encontrava-se um cãozinho todo encolhido e assustado, camuflando com a cor do papelão. Antes que meu pai colocasse a caixa em lugar mais baixo para que eu e minha irmã pudéssemos enxergar o seu interior, minha mãe já foi dizendo todos os pontos negativos de ter um cachorro em casa. Xixi dentro de casa, móveis e calçados roídos, despesas com ração e remédio, disponibilidade para passear e dar banho, além de todo carinho que um cãozinho recém-nascido deve receber. Lembro-me bem do semblante nervoso de minha mãe ao dizer tudo isso, de uma vez só.

Mas no momento que ouvimos ecoando a palavra "cachorro", minha irmã e eu olhamos uma para a outra e corremos o mais rápido que pudemos rumo à caixa, pegando no colo aquele animalzinho tão pequeno e tão doce.  Tinha as orelhas compridas, o corpo alongado, patas curtas e os olhos cor de caramelo. Não tinha uma raça, nem muito valor de mercado, meu pai disse que acabara de ganhar de um amigo, cuja cadela havia parido há poucos dias. Era um vira-latas meio basset, uma mistura de beleza tão graciosa, que minha irmã já lhe sugeria um nome antes mesmo de minha mãe terminar de dizer todos os "contra" de ter um cachorro em casa.

Depois de várias sugestões, veio o nome de Russo. Era tão miúdo, tão indefeso, que quem o olhasse andando de um lado para o outro, reconhecendo o quintal até o muro do fundo, o amaria eternamente. Balançava o rabinho e vez ou outra uma orelha virava para trás da cabeça, de tão comprida que era. E corria e voltava, e mordia tudo o que via, encostando aquele focinho gelado em nossos pés e rolando nos tapetes da área.

E assim, contrariando todas as possibilidades e permissões de minha mãe, o Russo permaneceu. E permaneceu por muito tempo, mais do que os estudos apontam para a expectativa de vida dos cachorros, mais do que os especialistas dizem sobre cães que não levam uma vida muito "saudável", com gastos exorbitantes no pet shop.

E o Russo foi crescendo, não mais do que a hereditariedade lhe permitia, mas o suficiente para que minha mãe concordasse à época, para que ele ficasse conosco. Viveu por dezesseis longos e felizes anos. Oitenta anos de idade, se comparado à raça humana. E comia de tudo. Almoçava como a gente, comia pão de queijo quentinho quando minha mãe fazia, ração, doce de leite. Contrariou todos os estudos e recomendações. Contrariou minha mãe e as estatísticas.

Ah, ainda me lembro quando levávamos o Russo ao sítio do meu pai, aqui pertinho da cidade. O Russo ia na carroceria da caminhonete, com o pescoço amarrado na coleira e, mal chegava lá perto da casa do sítio, ele já queria pular dali para correr a toda a velocidade pelas redondezas. Uma vez pulou de coleira e tudo e se não fosse o meu pai para correr e desamarrar a corda da gradinha do carro, o Russo teria se enforcado. Quando descia, corria, corria muito por todos os lados, como se fosse o cachorro mais feliz do mundo no meio daquele tanto de mato. De tão baixinho que era, mal dava para vê-lo ao longe, mas era facilmente visível o trajeto que fazia, vendo as folhas, o mato e a grama balançando por onde passava. E voltava cheio de carrapicho, com a língua para fora de tanto correr, ofegante e feliz com tamanha liberdade.

Em casa, latia tão alto que era capaz de acordar toda a vizinhança. Latia quando avistava cavalos, latia quando alguém passava na rua. E latia, e uivava e chorava todas as vezes em que nos ausentávamos de casa. Ficava até sem comer, tadinho. Sempre muito bravo, demonstrava autoridade quando chegava visita em casa, latindo alto com a cabeça erguida, estranhando todos que não conhecia.

E reconhecia de longe nosso cheiro, era aquele que me esperava chegar de madrugada, que vinha correndo ao meu encontro quando mudei-me para Franca e vinha pra cá nas férias. Era ele que se deitava em baixo da mesa da copa, para nos fazer companhia enquanto almoçávamos, todos os dias. Era ele que ficava eufórico quando desconfiava que abriríamos o portão, para que ele pudesse passear ali perto. Latia quando tocava o interfone, sabia que aquele som remetia à ideia de que alguém abriria o portão e que ele poderia sair para dar um passeio na rua. E morria de medo de fogos de artifício, detestava festa de Réveillon e Copa do Mundo por conta disso.

Não podia ver aberta a porta da cozinha que já ia logo entrando devagarinho, no tilintar das unhas daquelas tão miúdas quatro patas, quando tocavam a cerâmica. E percorria todo o corredor, passava pelos quartos, o banheiro, a escada, até chegar à sala, quando corria para o tapete da porta que dava acesso à sacada e ali permanecia por toda a tarde, no lugar em que ele mais gostava de ficar.

Foi uma única vez ao pet shop para tomar banho, mas voltou tão estressado que nunca mais o levamos lá. Um funcionário disse que ele era muito "brabo" e que não conseguiram lavá-lo muito bem.

Mas essa semana tivemos que levá-lo ao veterinário, estava já muito fraco e mal conseguia equilibrar-se em suas patas curtas e já cansadas. Sofria de um mal degenerativo e irreversível, resultado da idade já avançada. Em seus últimos dias, ficou cego e já não andava mais. Não comia e não apresentava nenhuma reação. O veterinário sugeriu a eutanásia. Meu Deus, que decisão difícil. Sacrificar um animalzinho tão amado, soava a traição, embora nada mais pudesse ser feito por ele.

Quando saí hoje de manhã para o trabalho, ainda pude sentir bater bem fraco o seu coração. Quando voltei, vi apenas a sua casinha de madeira no quintal, exposta ao sol, e a sua vasilha de água de cabeça para baixo, mais à frente, na mureta. Procurei-o por ali, mas quando entrei na cozinha, olhando bem nos olhos de minha mãe, as palavras já eram totalmente desnecessárias. Meu pai o havia levado e, quando voltou pra o almoço sozinho e cabisbaixo, em silêncio todos comemos quietos, chorando, pensando ainda no que era certo ou errado, pensando que comer naquele momento dava ares de frieza, pensando no Russo, nosso pequeno que acabava de partir. Nem mesmo os passarinhos vieram nos visitar hoje, para comer restos de comida que ele deixava de lado. A casa ficou vazia, nossos corações também. Meu neguinho, você foi durante todos esses anos um fiel e bom companheiro. Ainda ouço o seu latido na memória. Vá em paz.

domingo, 12 de maio de 2013

Música de quem vai embora


Tocava uma música tão ao fundo, distante, que conforme o vento mudava a direção, não se ouvia quase nada. Ora o som entrava tão dentro dos ouvidos que parecia estar vindo aqui de muito perto, ora o vento girava e nada se escutava além dos barulhos da noite, por mais que se fizesse muita força para tentar decifrar a letra daquela canção tão distante daqui. Lembrei-me, enquanto tomava banho, que você adora música e da sua rapidez em decifrá-las tão logo você as ouve, ainda que o som esteja baixo. 

Diga-me que não temos segredos, que talvez eu ouça, pois costumo ouvir e prestar atenção em quase tudo que você diz, talvez mais do que consegui ouvir da janela do meu quarto a música ecoada ao som da vitrola, a duas ou doze quadras dali. Era uma voz feminina, mas como disse, não era possível precisar a distância da minha cama até a vitrola, dava para sentir o vento levando e trazendo bagunça por todos os lados. 

Lembrei-me das nossas risadas, dos seus olhos, do seu cheiro. A canção continuou naquele vai e vem, oscilação noturna mais gostosa de sentir. Fechando os olhos dá a impressão de que a audição fica mais aguçada, os ouvidos ficam mais atentos... e as lembranças ficam mais calmas.